Passados os primeiros dias de comoção da tragédia em Congonhas, a abertura da "caixa preta" do airbus da TAM revelou que houve falha no equipamento de freio do avião. Mesmo assim, parte da mídia insiste agora em culpar os pilotos - numa clara tentativa de encobrir o que está cada vez mais explícito: as razões da crise no setor vão além de questões pontuais. A discussão sobre as práticas selvagens das companhias aéreas em busca do lucro segue silenciada.Vice-presidente do PSB, o ex-ministro Roberto Amaral acompanha há anos o desenrolar da crise aérea brasileira. Segundo ele, o caos atual nos aeroportos "vem de longe", desde a desastrada privatização da extinta VASP. Para Amaral, são diversas as causas da colapso, entre elas o fato de as empresas de aviação, despreparadas e sem experiência, operarem hoje sob um regime de "quase-monopólio" privado, no limite de suas possibilidades, movidas apenas pela ânsia de lucro: "Redução de custos passou a ser a religião da aviação comercial brasileira", alerta o ex-ministro, em entrevista exclusiva ao Portal PSB.
Portal PSB: Quem fica mais prejudicado com o caos da aviação brasileira? Roberto Amaral: A crise da aviação comercial brasileira explodiu no colo do governo e atingiu mortalmente centenas de brasileiros. O inventário dos prejuízos - as irreparáveis perdas humanas, principalmente - e os danos materiais, os atrasos, os apagões, o desconforto dos passageiros, ainda está por ser feito e jamais será conclusivo. Se a derrubada do avião da Gol foi sua advertência, a queda do avião da TAM foi apenas o momento mais doloroso de uma seqüência de erros e omissões, que vêm de longe.
Portal PSB: A caixa preta do avião da TAM revelou falha do sistema de freio da aeronave... Que outras causas podem ser apontadas para o acidente? Roberto Amaral: A tragédia de Congonhas começou a ser montada com a desastrada privatização da VASP, uma companhia até então eficiente, com frota própria, e que se orgulhava, na propaganda de serviços, de alardear a pontualidade de seus vôos. Essa empresa foi vendida por alguns tostões a um empresário de ônibus de Brasília, evidentemente sem qualquer experiência na área, sem os necessários recursos e, principalmente, sem a necessária idoneidade. Mas era 'moderno' privatizar... A partir da posse dos novos mandatários, começou a empresa a exaurir-se, e seu fim era uma questão de tempo. Quando seus aviões ficaram presos ao solo - e é uma tristeza vê-los ainda parados, ao tempo, nas pistas dos aeroportos do país - ninguém pôde alegar surpresa, pois estávamos diante de uma morte anunciada. Mas foi lenta sua agonia, durante a qual o poder público revelou-se em impávida omissão. A mesma omissão que se repetiria com a também esperada falência da TRANSBRASIL, cujas aeronaves também permanecem nos pátios, paradas. O pano de fundo de tudo isso é a política neoliberal de fragilização do Estado, de redução de sua capacidade gestora, de precarização de nossa infra-estrutura, afetando portos, aeroportos, rodovias e a segurança do espaço aéreo.O último acidente nada tem a ver com as condições da pista; se tivesse, centenas de outros acidentes teriam ocorrido, como outros podem ocorrer, com aviões trombando em arranha-céus. Por que a concentração de vôos em Congonhas? Porque ele é mais lucrativo. O eixo de tudo: lucro.
Portal PSB: Como se desenvolveu o processo de privatização do setor aéreo?Roberto Amaral: Essas duas empresas, já inadimplentes, sujeitas a administrações depredadoras, foram aquinhoadas com rotas para o exterior, com o argumento de que ´precisavam se dolarizar´. A aventura se revelou um desastre, que só serviu para aumentar, pelo acordo da reciprocidade, a freqüência dos vôos de companhias internacionais para o Brasil. Assim, enquanto hoje - mal e porcamente - voamos aos Estados Unidos pela TAM, os americanos podem chegar ao Brasil pelas asas da American Airlines, pela Delta, pela Continental e pela United. Já vinha dessa época a agonia prorrogada da VARIG, a principal rede doméstica e praticamente a única bandeira internacional do país. E com ela se foi a experiência acumulada de mais de 75 anos!Na seqüência, o cartel TAM-GOL - que domina a malha doméstica - se transforma em quase-monopólio dos vôos internacionais, quando a GOL adquire a VARIG, tomando suas linhas e jogando na lata do lixo sua experiência. Nosso capitalismo é assim: não admite a concorrência e a imprensa que condena o monopólio público se cala diante do monopólio privado. Já estamos com saudades de um tempo não longínquo no qual o passageiro podia escolher a empresa de sua preferência e essa preferência era disputada pelas empresas com o aprimoramento dos serviços. Foi-se o tempo em que nossos céus conheciam as bandeiras da VARIG, VASP, TRANSBRASIL, Cruzeiro... Foi-se o tempo da concorrência comercial. É a vez do capitalismo monopolista.
Portal PSB: A iniciativa privada não é capaz de administrar companhias aéreas ao mesmo tempo lucrativas e seguras? Roberto Amaral: O caos aéreo verificado hoje mostra que não. Veja a concorrência que havia antes e que agora não existe mais... O que se colocou em seu lugar? Em meses, uma empresa até então pequena, regional, recordista em acidentes aéreos, transformou-se na principal companhia brasileira e hoje opera um número de aeronaves superior ao da VARIG em seu melhor momento. Concomitantemente, um outro grupo de empresários de ônibus (liderado por esse Nenê Constantino, sócio do Roriz em maracutaias) monta uma nova empresa aérea, fundada na precarização dos serviços de terra e bordo em nome da redução de custos operacionais, o que foi saudado pela imprensa como exemplo de administração moderna. Redução de custos, aliás, passou a ser a religião das duas empresas, que controlam a aviação comercial brasileira. Instalou-se o virtual monopólio privado. O fim da concorrência, com as duas empresas perseguindo segmentos distintos de público, determinou a queda dos serviços... Daí, a seqüência de overbooking (venda de mais passagens do que o número de assentos disponíveis nos vôos), superlotação, atrasos, queda no serviço de bordo, queda no atendimento de terra, manutenção precária e irresponsável teria de refletir-se, igualmente, na manutenção.
Portal PSB: Então a falta de concorrência conduz à falta de segurança, entre outras conseqüências... Roberto Amaral: É bom lembrar que estamos falando da exploração de serviço público especial, pois em um país de nosso tamanho - e sem opções de outras vias - o transporte comercial aéreo é item de segurança. Mas passou a ser dominado pela ganância, pelo desrespeito ao usuário, às leis, à ética, à educação. Eis a lição desse capitalismo selvagem: enquanto os serviços são precarizados, enquanto as aeronaves caem e matam, os lucros da TAM e da Gol se revelaram estratosféricos!
Portal PSB: Um conhecido liberal disse, certa vez, que tinha medo de avião porque o foco das empresas capitalistas é o lucro e não a segurança... Roberto Amaral: E esse é, também, o foco da chamada 'grande imprensa' brasileira. Ela, que se apresenta como defensora da 'modernidade', do capitalismo selvagem, do neoliberalismo, da privataria, olímpica, como se nada tivesse com nada, pairou soberana, a procurar responsáveis pela tragédia. Não apresentou nenhuma palavra sobre essa forma predatória de o capitalismo brasileiro privatizar o público.
Portal PSB: Ao explorar a comoção pública da tragédia, qual seria verdadeiramente o objetivo das emissoras? Roberto Amaral: Um amigo meu, o Jaime Cardoso, telefonou-me ontem lembrando o papel desempenhado pelos camioneiros chilenos na desestabilização do governo Allende e a preparação do golpe (ocorrido no Chile, na década de 70). Acho que ele está exagerando...
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