Pequena Resenha Crítica
Romance “SAL DA TERRA” de Caio Porfírio Carneiro: O Encharcamento de Almas Carentes Expropriadas
“Cada escritor vai soprar no espaço em branco o
seu próprio carma, a sua sabedoria cavada no
atordoamento causado pelo tanto de mistério que
nos constitui e humaniza” - João Gilberto Noll
Com uma narrativa realista a palo seco, o Romance “Sal da Terra” de Caio Porfírio Carneiro, um dos pilares da UBE-União Brasileira de Escritores faz tanto tempo, com brilho de estréia já no seu lançamento em 1965 (Editora Civilização Brasileira, RJ), depois relançado em 1980 e 1984 pela Editora Ática, SP, retorna agora, quarta edição em todo o seu esplendor, pela Editora LetraSelvagem (Taubaté-SP), mantendo ainda o mesmo vigor como se fosse romance atual, porque ainda encanta e abre os olhos para a realidade-sal de uma região, de um tempo, de um espaço-lugar, como fosse momento atual numa joiada literatura de já-hoje.
Parias, tarefeiros, brabos e mansos, nas lidas das Salinas do Ceará, sofrido nordeste brasileiro. E os nominados personagens sofrendo calos, cegueiras, entre maxixes, deformações, meretrício, mais águas salobras, cloreto de sódio, ainda a agonia, tragédia, crueldades, exploração humana, sangrias desatadas, aqui e ali na técnica do leque, abrindo e fechando parágrafos entre diálogos cortantes que enredam a compreensão do historial como um todo.
Guedegue, Cristina Louca, Bibio, Cego Delfino, Mestre Nonato, entre outros, personagens fortes e marcantes vão se passando e pontuam as acontecências entre os paradoxos de beleza e horror, no cotidiano doloroso da sobrevivência tornada possível a custo alto, preço infame, feito uma geografia de dezelo humano, com implicâncias de impropriedades sociais, o próprio continente branco (“impurezas no branco”), a diversidade beleza/sordidez, mais miséria, exploração, o homem brucutu feito peão ou fantoche expropriado entre o sal, o sol e o ser, ou bisonho sub-ser no caso, entre pirâmides de sal grosso e a própria miséria urdida; miserabilidade branca de uma solidão aterrorizantemente branca-selvagem, em que a pior aridez é a relação de troca capital/trabalho. Mudou muito desde então?
O peão tarefeiro brabo como abominável homem do trabalho pesado e mal-remunerado, quase sub-servo, o ferro-de-cova; num formigueiro branco entre travessias de sub-operários com brechas na sola do pé, a cegueira precoce, a luminosidade de uma salina que também provocada viola e cega. Diz o Negro Valério: “Salina só tem beleza por fora(...). Come por dentro que nem rato”.
Sim, no romance SAL DA TERRA salina tem cor e lavra carpida de morte “caiação de cemitério”, todos os personagens como lazarentos desfilam cada um ao seu modo desconfigurado entre as rudezas de muito cloreto de sódio, o maldito e lucrativo sal.
“A viração vibrava nas frinchas do telhado e as pilhas de sal, enfileiradas no barranco, branquejavam ao luar como estátuas silenciosas. Acordes tristonhos de um violão para o lado do puteiro. Gritos ao longe de um menino apanhando (pg. 38)”. Essa é a cruenta tônica narrativa, ora entintando os núcleos desumanos dos negredos do aldeamento, ora uma fluidez do real translucidando o próprio verbo salgar as carnes que foca, conta, liga, entrelaça, permeia. A última capa do livro aponta o cenário: “As mazelas de um meio físico e social hostil e degradante”.
Escombros humanos salinizados. Prosa propositalmente crua, sendo ela mesma também salinizada. Desalento. Melancolia, a própria brancura de certa forma paradoxalmente turvando a lucidez dos expropriados, entregues à própria sorte, ao deus-dará, os tais tarefeiros obtusos. Sal marinho e carne humana enquanto o subviver. O charque social. O achaque do explorador, os parasitas e as paranóias do entorno.
“Uma grande paz branca envolve a salina. As águas claras dos escoadeiros corriam em filetes como compridas tranças (pg.46)” Iniciação de mão-de-obra quase escrava que aleija, degrada... Iniciações amorosas. Relações de conflito. Caio Porfio Carneiro fala de sua terra com mostra de quem contundentemente bem exercita o verbo escrever com olhos que resvalam para um devão sócio-crítico da antropologia.
George Lukács diz que romance é a história de um herói insatisfeito que busca valores artísticos num mundo degradante. Assim é o romance SAL DA TERRA de Caio Porfírio Carneiro. Uma obra entrecortada de diálogos justapostos, conferindo desfechos, inclusive no pré-final que implicita um desdizer, o possível que, o talvez de; manejos de véus literais e assim por diante, bulindo com a imaginação e a sensibilidade do leitor nos sentidos tácitos ou nas aproximações das narrativas, quando não num proposital distanciamento dos quadros cênicos descritivos, levando e trazendo o leitor para aqui e ali, indicativos do que elucida no contar. O homem sal da terra? O escritor sal da terra, dando a sua temperança no olhar, descrever, fabular?
Turvam-se águas e salinas, para descobrir-se a transparência da terra em transe; buscando-se a transparência humana, o homem também como sal de si mesmo. Sem contar não podemos parecer humanos. E contando mostramos o desumano. Esse mundo não é falso, esse mundo é um erro, diria Mia Couto. Escrever é exercitar a paciência para descrever núcleos de remorsos incontidos?
A terra e o feitio do homem. O homem o bicho da terra. A terra sal do homem. O fatalismo regional. Nonato o Mestre da Salina. O sertão-sol-mar. O submundo do trabalho expropriado e o próprio sentido metáfora do sal nesse intento salgando idéias, corações, músculos, almas; secando-as ao sol para o charque lacrimal do devir a vidas carentes expropriadas na mixórdia da sobrevivência difícil. A subvida, ou a vida-cloaca no pântano da condição humana. O homem pântano do homem.
Caio Porfírio Carneiro destrincha a carne, o sangue e o eio do sal do que conta. Tempera parágrafos, nunca salga demais as contações, não se excede nas errações. Mas a vida (vida?) das salinas está muito bem exposta literariamente e o livro SAL DA TERRA é testemunhal.
Obstáculos existem na sobrevida, detalhes pungentes enredam, a selva-salina na salmoura em testamento de vidas ao rés do chão saltam aos olhos na leitura; sinais e desejos, lumes e limos, contextualizando atos e passagens, compartilhando assim com texto tenso a invisibilidade dos comuns na brancura fria das salinas, feito vazamentos de águas paradas, rabiscando luzes literais nelas, para um romancear que traz o pertencimento dos inválidos, encharcados pela rudeza crua da sobrevivência roubada nesses brasis gerais com a tez chão dos que vegetam a mingua.
Escrever é colocar sal na ferida vida dessa brasilidade expropriada. E Sal da Terra de Caio Porfírio Carneiro resgata isso num belo romance.
-0-
Silas Correa Leite
E-mail: poesilas@terra.com.br
www.itarare.com.br/silas.htm
Romance “SAL DA TERRA” de Caio Porfírio Carneiro: O Encharcamento de Almas Carentes Expropriadas
“Cada escritor vai soprar no espaço em branco o
seu próprio carma, a sua sabedoria cavada no
atordoamento causado pelo tanto de mistério que
nos constitui e humaniza” - João Gilberto Noll
Com uma narrativa realista a palo seco, o Romance “Sal da Terra” de Caio Porfírio Carneiro, um dos pilares da UBE-União Brasileira de Escritores faz tanto tempo, com brilho de estréia já no seu lançamento em 1965 (Editora Civilização Brasileira, RJ), depois relançado em 1980 e 1984 pela Editora Ática, SP, retorna agora, quarta edição em todo o seu esplendor, pela Editora LetraSelvagem (Taubaté-SP), mantendo ainda o mesmo vigor como se fosse romance atual, porque ainda encanta e abre os olhos para a realidade-sal de uma região, de um tempo, de um espaço-lugar, como fosse momento atual numa joiada literatura de já-hoje.
Parias, tarefeiros, brabos e mansos, nas lidas das Salinas do Ceará, sofrido nordeste brasileiro. E os nominados personagens sofrendo calos, cegueiras, entre maxixes, deformações, meretrício, mais águas salobras, cloreto de sódio, ainda a agonia, tragédia, crueldades, exploração humana, sangrias desatadas, aqui e ali na técnica do leque, abrindo e fechando parágrafos entre diálogos cortantes que enredam a compreensão do historial como um todo.
Guedegue, Cristina Louca, Bibio, Cego Delfino, Mestre Nonato, entre outros, personagens fortes e marcantes vão se passando e pontuam as acontecências entre os paradoxos de beleza e horror, no cotidiano doloroso da sobrevivência tornada possível a custo alto, preço infame, feito uma geografia de dezelo humano, com implicâncias de impropriedades sociais, o próprio continente branco (“impurezas no branco”), a diversidade beleza/sordidez, mais miséria, exploração, o homem brucutu feito peão ou fantoche expropriado entre o sal, o sol e o ser, ou bisonho sub-ser no caso, entre pirâmides de sal grosso e a própria miséria urdida; miserabilidade branca de uma solidão aterrorizantemente branca-selvagem, em que a pior aridez é a relação de troca capital/trabalho. Mudou muito desde então?
O peão tarefeiro brabo como abominável homem do trabalho pesado e mal-remunerado, quase sub-servo, o ferro-de-cova; num formigueiro branco entre travessias de sub-operários com brechas na sola do pé, a cegueira precoce, a luminosidade de uma salina que também provocada viola e cega. Diz o Negro Valério: “Salina só tem beleza por fora(...). Come por dentro que nem rato”.
Sim, no romance SAL DA TERRA salina tem cor e lavra carpida de morte “caiação de cemitério”, todos os personagens como lazarentos desfilam cada um ao seu modo desconfigurado entre as rudezas de muito cloreto de sódio, o maldito e lucrativo sal.
“A viração vibrava nas frinchas do telhado e as pilhas de sal, enfileiradas no barranco, branquejavam ao luar como estátuas silenciosas. Acordes tristonhos de um violão para o lado do puteiro. Gritos ao longe de um menino apanhando (pg. 38)”. Essa é a cruenta tônica narrativa, ora entintando os núcleos desumanos dos negredos do aldeamento, ora uma fluidez do real translucidando o próprio verbo salgar as carnes que foca, conta, liga, entrelaça, permeia. A última capa do livro aponta o cenário: “As mazelas de um meio físico e social hostil e degradante”.
Escombros humanos salinizados. Prosa propositalmente crua, sendo ela mesma também salinizada. Desalento. Melancolia, a própria brancura de certa forma paradoxalmente turvando a lucidez dos expropriados, entregues à própria sorte, ao deus-dará, os tais tarefeiros obtusos. Sal marinho e carne humana enquanto o subviver. O charque social. O achaque do explorador, os parasitas e as paranóias do entorno.
“Uma grande paz branca envolve a salina. As águas claras dos escoadeiros corriam em filetes como compridas tranças (pg.46)” Iniciação de mão-de-obra quase escrava que aleija, degrada... Iniciações amorosas. Relações de conflito. Caio Porfio Carneiro fala de sua terra com mostra de quem contundentemente bem exercita o verbo escrever com olhos que resvalam para um devão sócio-crítico da antropologia.
George Lukács diz que romance é a história de um herói insatisfeito que busca valores artísticos num mundo degradante. Assim é o romance SAL DA TERRA de Caio Porfírio Carneiro. Uma obra entrecortada de diálogos justapostos, conferindo desfechos, inclusive no pré-final que implicita um desdizer, o possível que, o talvez de; manejos de véus literais e assim por diante, bulindo com a imaginação e a sensibilidade do leitor nos sentidos tácitos ou nas aproximações das narrativas, quando não num proposital distanciamento dos quadros cênicos descritivos, levando e trazendo o leitor para aqui e ali, indicativos do que elucida no contar. O homem sal da terra? O escritor sal da terra, dando a sua temperança no olhar, descrever, fabular?
Turvam-se águas e salinas, para descobrir-se a transparência da terra em transe; buscando-se a transparência humana, o homem também como sal de si mesmo. Sem contar não podemos parecer humanos. E contando mostramos o desumano. Esse mundo não é falso, esse mundo é um erro, diria Mia Couto. Escrever é exercitar a paciência para descrever núcleos de remorsos incontidos?
A terra e o feitio do homem. O homem o bicho da terra. A terra sal do homem. O fatalismo regional. Nonato o Mestre da Salina. O sertão-sol-mar. O submundo do trabalho expropriado e o próprio sentido metáfora do sal nesse intento salgando idéias, corações, músculos, almas; secando-as ao sol para o charque lacrimal do devir a vidas carentes expropriadas na mixórdia da sobrevivência difícil. A subvida, ou a vida-cloaca no pântano da condição humana. O homem pântano do homem.
Caio Porfírio Carneiro destrincha a carne, o sangue e o eio do sal do que conta. Tempera parágrafos, nunca salga demais as contações, não se excede nas errações. Mas a vida (vida?) das salinas está muito bem exposta literariamente e o livro SAL DA TERRA é testemunhal.
Obstáculos existem na sobrevida, detalhes pungentes enredam, a selva-salina na salmoura em testamento de vidas ao rés do chão saltam aos olhos na leitura; sinais e desejos, lumes e limos, contextualizando atos e passagens, compartilhando assim com texto tenso a invisibilidade dos comuns na brancura fria das salinas, feito vazamentos de águas paradas, rabiscando luzes literais nelas, para um romancear que traz o pertencimento dos inválidos, encharcados pela rudeza crua da sobrevivência roubada nesses brasis gerais com a tez chão dos que vegetam a mingua.
Escrever é colocar sal na ferida vida dessa brasilidade expropriada. E Sal da Terra de Caio Porfírio Carneiro resgata isso num belo romance.
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Silas Correa Leite
E-mail: poesilas@terra.com.br
www.itarare.com.br/silas.htm
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