Foto: Marcelo Amaral
ÁLBUM DE ESTREIA DO GRUPO, DE 1987, NUNCA FOI EDITADO EM CD E AGORA ESTÁ DISPONÍVEIS PARA OS FÃS EM FORMATO DIGITAL
Em
25 de setembro de 1990, quando David Bowie cantou no Olympia, em São
Paulo, no show mais exclusivo de sua primeira visita ao Brasil (os
outros foram para multidões, na Praça da Apoteose, no Rio, e no Estádio
Palestra Itália, em São Paulo), introduziu “Starman” sem precisar dizer o
nome: “Esta é uma música que vocês já conhecem em português”. “O
Astronauta de Mármore”, versão feita e gravada por um grupo com menos de
três anos de estrada, o Nenhum de Nós, tinha sido a canção mais tocada
no Brasil em 1989. A letra em português, que tomava liberdades
criativas, sem se ater à literalidade, recebera aprovação do próprio
Bowie. Foi apenas uma das façanhas da banda gaúcha no começo de sua
invejável jornada que completou 30 anos em outubro de 2016.
Eles
começaram sem pedir licença, furando a fila do sucesso entre formações
com mais experiência e mais imprensa. Logo no disco de estreia, “Nenhum
de Nós” (lançado em setembro de 1987), emplacaram o megahit “Camila,
Camila”, que se tornaria um clássico do pop oitentista (regravado por
Cazuza e Biquíni Cavadão, entre outros). Hoje, somando 15 álbuns de
carreira, seguem sua invejável travessia pelo terreno acidentado do rock
brasileiro com público fiel e forte identidade, renovada década após
década com a exploração de novos territórios musicais, influências e
parceiros (entre eles, ídolos inspiradores como Herbert Vianna e o
argentino Fito Páez).A Sony Music relança agora em formato digital os quatro primeiros álbuns do grupo: “Nenhum de Nós” (1987), raridade que nunca foi editada em CD; “Cardume” (1989), que traz “O Astronauta de Mármore (Starman)”, o inovador “Extraño” (1990), revigorado por influências regionais da cultura gaúcha e dos pampas, e “Nenhum de Nós” (1992), do hit “Ao Meu Redor” (eleito melhor clipe do ano pela audiência da MTV). Além das gravações originais, remasterizadas, a reedição inclui mais 19 faixas bônus, entre lados B, remixes e versões alternativas.
O trabalho de estreia mostra uma banda - na época, trio, com Thedy Corrêa (baixo e vocais), Carlos Stein (guitarra) e Sady Homrich (bateria) - muito jovem, mas que já sabia o que era bom. Thedy tinha como norte para os vocais Iggy Pop e Peter Murphy, do Bauhaus, e o pós-punk com tintas góticas era perseguido em várias composições e arranjos. Referências literárias cultas (Mishima, Oscar Wilde, Jorge Luis Borges, John Fante) salpicam as letras baseadas em angústia pós-adolescente, em mistura ocasionalmente certeira: velhos e novos fãs hão de redescobrir com prazer canções como “Homens-Caixa” e “Enquanto Conversamos”.
O
prenúncio de um caminho original aparece em “Frio”, que tem sons
adulterados de cuíca e interferência de Vitor Ramil ao telefone. Em
outra frente, a punk-funkiada “Adeus” traz Edu K (do Defalla) em
guitarra e vocais de apoio. “Camila, Camila”, de esperta arquitetura pop
já a partir da concepção rítmica, conta com um pedal de distorção de
guitarra emprestado por Fabio Golfetti (do Violeta de Outono), o que
amplia o caráter “retrato de geração” do disco. Por outro lado, a
abordagem do tema da letra, violência contra a mulher, não podia ser
mais atual. Além da gravação incluída no LP original, uma versão em
espanhol e quatro outras remixagens ressurgem em formato digital: a mais
surpreendente é “Camila, Camila (speedversion)”, que começa com
introdução tribal e descamba (no bom sentido) para uma doida acidhouse.
“Cardume”
abre com a certeira “Eu Caminhava”, com o desenho melódico marcante da
guitarra de Carlos Stein e ritmo que fazia ligação direta com “Camila,
Camila”. Mas também traz participações que podem soar inusitadas: Wander
Wildner faz vocais de apoio no refrão punk da faixa-título, e Giuseppe
Frippi (do Voluntários da Pátria, entre outras formações do underground
paulistano) contribuiu com guitarra em “O Astronauta de Mármore”. Na
funky “Striptease Baby”, Júlio Cesar, da saudosa banda paulistana Gueto,
divide o microfone com Thedy.Mas o convidado que fez diferença na história do Nenhum de Nós foi Renato Borghetti, virtuose da gaita ponto (conhecida fora do Rio Grande do Sul como acordeão) que trouxe elementos gaúchos para a faixa "Fuga" (liricamente, uma continuação de "Camila, Camila").
Entre as oito faixas-bônus relacionadas a Cardume, dois remixes de "Eu caminhava" (um, "hard mix", com guitarra distorcida, e outro, "cathedralmix", com órgão), uma versão em espanhol de “Fuga” (intitulada “Chica”) e quatro tratamentos diferentes para o hit “O Astronauta de Mármore (Starman)”, todos voltados para as pistas. O mais radical deles, “Club DJ”, eficientemente puxado para a eletrônica em formato pop inferior a dois minutos.
O
álbum Extraño, aclamado pela crítica desde o lançamento, demonstraum
baita amadurecimento nas composições, mais bem acabadas em todos os
aspectos (além da maior experiência, ajudou a boa mão de Veco Marques,
incorporado ao time da banda) e com direito a passos ambiciosos como “O
Inferno e o Céu” e o hit “Sobre o Tempo”. O disco marca definitivamente a
guinada "pangauchesca", com influências tanto do nativismo quanto do
rock argentino e de formações como Almôndegas e Saracura.
Isso
não impede que sejam ouvidas blue notes em "Júlia", uma das pérolas
escondidas do repertório, que inclui rocks retos como "As Mulheres que
Eu Rasguei", "O Espelho do Cego" (que tem a marcante slide de Lulu
Santos) e "Mentira" (com letra de Vitor Ramil), rescendendo a R.E.M..
Mas a personalidade maior surge na faixa-título e nos toques do gaiteiro
Luis Carlos Borges, fundamental para o tango-rock "Algo que Não se Pode
Tocar". Nas quatro faixas-bônus, uma versão longa para "Sobre o Tempo"
e três tesouros para os fãs: "Infância", "Ninguém pra Dizer Adeus"e
"Dia de Inverno".Lançado originalmente em 1992, o quarto álbum da banda, intitulado apenas Nenhum de Nós, também traz faixas com apelo de raridade, pois desde então não ganhou reedição.As letras retomam temas mais urbanos, aprofundando a "velha" angústia jovem dos primeiros trabalhos. Thedyse arrisca e cresce como vocalista, encontrando o tom certo das interpretações grandiloquentes que parte do repertório ("Jornais", "Duas Luas", a releitura de "Tente Outra Vez", de Raul Seixas) exige. A participação de Veco como compositor aumenta: assina sete músicas. O hit "Ao meu Redor" mostra o grupo (convertido em quinteto, com a adição de João Vicenti nos teclados e acordeão) em pleno domínio daartesania pop. E a regravação de “Sangue Latino” (clássico dos Secos & Molhados) é um deleite retrô, com órgão grooveado dando um molho mais do que especial. A faixa bônus “Sangue Latino (Dance version)” prolonga a mágica da dobra no tempo por mais de seis minutos, com direito ao toque de Midas do DJ Memê no fatbass eletrônico.
Com
ou sem nostalgia, são ao todo 63 gravações que ressurgem com tratamento
apropriado e recuperam parte importante da história do pop/rock
brasileiro.
Capa dos discos relançados
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