quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Ser puta. Que putaria é essa?


Pensei durante todo o dia de sábado sobre como começar a matéria sobre o desfile da Daspu. Depois de passar a madrugada ouvindo histórias e bebendo com as putas até o sol raiar, decidi subverter a forma e relatar vivência

Por Camila Marins

20 horas e as escadarias do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro já estavam tomadas. Eram mulheres, homens, pessoas em situação de rua, professores e estudantes para assistir ao desfile da grife Daspu, no dia 28/11. Luzes em tons de rosa e, no comando, Lourdes, 73 anos, puta há 55 e ainda na ativa. As primeiras mulheres começaram a entrar no palco e, no destaque, uma negra com um vestido dourado, costas desnudas e seios performando sua nudez. Betania Santos tem 42 anos e é puta há mais de 20, integrante da Associação Mulheres Guerreiras do Jardim Itatinga, em Campinas (SP). Com orgulho, ela diz: “Puta, vadia e revolucionária”. Dezenas de mulheres no palco afirmam sua identidade e performam empoderamento e autonomia. Forjando timidez, entra em cena, Amara Moira, mulher trans, 30 anos e puta. Com um vestido nude, Amara morde uma maçã com o olhar “Somos más e podemos ser piores”.

Aos poucos, as mulheres vão ocupando o palco com seus corpos e suas performances. Abrem pernas como compasso, abraçando desejos, punhetas, gozos, boquetes e siriricas. São putas, mulheres trabalhadoras, que vendem serviços sexuais e, por isso, se tornam alvo da violência do Estado e da sociedade. A contemplação ultrapassa as fotos de celular e, na plateia, bocetas molhadas, paus duros e cus lambuzados. Com seios expostos marcados por fitas e calça apertada, Indianara Siqueira atravessa o palco afirmando sua identidade: “Uma mulher puta de peito e de pau. Nas escadarias do IFCS, templo do saber filosófico e das ciências sociais: de um lado, a igreja - templo sagrado; do outro, na rua dos Andradas ainda resiste um hotel barato - templo profano, onde por R$30 a hora, putas podem atender a clientes”, provoca Indianara, que é travesti. Ela dança como Lilith ao lado de estudantes do Prepara, NEM!, cursinho preparatório para trans e travestis para o Enem.  Tyfany Stacy, mulher trans e estudante escala um dos alicerces de ferro do palco e lá em cima estonteia com sua bunda atravessada em fio dental. Tyfany circula seus cabelos cacheados pelo ar com a força de Diana, a deusa.

A lua despontava no céu, enquanto putas celebravam o ritual da vida. Sim, elas existem. As putas estão todos os dias nas esquinas, nas ruas e com vidas rifadas. “Precisamos lembrar que estamos na semana de luta pelo fim da violência contra a mulher. Nós somos putas e exigimos direitos”, bradava Indianara. Ao fim do desfile, troca de roupa em camarim e a certeza de que a tarefa estava cumprida: “Gabriela Leite vive”. E vive nos sonhos de cada uma delas. Uníssonas, todas responderam à pergunta sobre o maior sonho da vida delas: “Cumprir o sonho de Gabriela Leite”. Gabriela Leite é uma das referências no movimento de prostitutas no Brasil e fundadora da grife Daspu. Ela lutou até o fim da vida pelos direitos das prostitutas. Atualmente, existe um projeto de lei, de autoria da Rede Brasileira de Prostitutas e defendido pelo Deputado Jean Wyllys, que regulamenta a prostituição no país. Alvo de críticas dos mais diversos setores, o projeto de lei intitulado Gabriela Leite, se aprovado, irá proporcionar direitos, segurança e autonomia.

A maior polêmica é em relação à cafetinagem. Bethania rebate: “Então, fechem os motéis, porque pagamos por um espaço, que exige trocas de toalhas, roupa de cama, limpeza e outros serviços. Você é jornalista e se quiser ter um jornal, pode. E nós, as putas? Não podemos nos auto-organizar em casas, onde nós vamos construir a nossa autonomia e a nossa segurança?”, me disse Bethania dividindo um copo de cerveja comigo. A prostituição no Brasil não é crime, mas a cafetinagem, sim. Isso significa que as putas podem vender seus serviços na rua, mas em locais fechados, não. “Agora, onde estamos mais expostas? Nas ruas ou nas casas de prostituição?”, questiona Betania.

Nesse momento, eu me lembrei da truculência do Estado quando invadiu, estuprou, espancou e violou dezenas de mulheres prostitutas no momento de fechamento e invasão do prédio da Caixa Econômica, em Niterói, em maio de 2014. Ouvi relatos chocantes e, ali naquele espaço, as putas mantinham a auto-organização de sua segurança. O Estado por negar direitos impõe a violência legitimada. E para onde elas foram? Retornaram às ruas e à vulnerabilidade. Sem contar os subornos, a exploração e as violências praticadas pela polícia para a manutenção de casas. Então, quem é o maior explorador e violador de direitos das prostitutas? O Estado ou a cafetinagem?

Um outro fator invisibilizado pela sociedade é a saúde da mulher trabalhadora. Como putas, muitas desenvolvem LER (Lesão por Esforço Repetitivo). “Afinal, quantas punhetas temos que bater para ganhar o dia? Desenvolvemos doenças de má circulação, LER, poderíamos estar assistidas pela CLT, ganhar insalubridade, benefícios por tempo de serviço, aposentadoria especial, entre tantos direitos que nos são negados”, apontou Betania, que também é mãe, dirigente, estudante e é formada em 16 cursos técnicos. “Olha, eu continuo na ativa e posso te dizer que tenho mestrado e doutorado na prostituição”.

Amara Moira, mesmo há pouco tempo na prostituição, debate a importância da identidade puta. “Eu tenho uma outra fonte de renda, que é uma bolsa de doutorado na Unicamp, mas isso vai acabar. Para nós, pessoas trans, não há espaço no mercado de trabalho formal, a maioria de nós somos expulsas de casa e saímos cedo da escola pela transfobia. Quando conseguimos um emprego é no telemarketing, por não expor nossos rostos, e, nesse caso, eu prefiro me prostituir. Comecei a me prostituir, a escrever sobre isso e a perceber que, se é isso o que temos, então é hora de fazermos da prostituição um lugar seguro, um lugar que não ameace nossos corpos, nossas vidas, sem nos envergonharmos de estar lá”, desabafou Amara, que é moderadora da página “E se eu fosse puta”.

Lourdes conheceu Gabriela Leite em Salvador, nos anos 80. “O que existe no Brasil é um falso moralismo num país fundado pelo racismo, machismo. Fiz essa tatuagem no braço esquerdo “Eu sou puta” para afirmar nossa identidade e digo para todas: vamos nos organizar politicamente, mostrar a cara e lutar por nossa identidade”, incentivou. Indianara Siqueira reafirma: “Somos mulheres trabalhadoras e por que não temos os mesmos direitos? Homens e mulheres são vítimas da exploração do trabalho todos os dias e qual a diferença com as putas? Gabriela Leite vive e sempre viverá em nossa luta pela defesa dos direitos humanos para todas as pessoas”.

E a noite terminou assim, com um tonel de latas de cervejas vendido na Praça Tiradentes até o sol raiar, um banheiro público de obras disponível e relatos de putas histórias. Porque nenhuma teoria atravessa a vivência da rua.

Foto: Helena Assanti

Camila Marins é jornalista e feminista 

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